Na segunda parte da entrevista, a urbanista Ermínia Maricato fala sobre propriedade de terra, uso intensivo de automóveis nas cidades, de movimentos sociais e do Programa Minha Casa Minha Vida. A primeira parte está aqui.
O seu livro usa uma expressão interessante, que é “analfabetismo urbanístico”. A que se aplica esse conceito?
Tenho uma hipótese, que é meio radical, mas estou cada vez mais convicta. A questão da terra é central nas relações de poder, nas falcatruas incríveis que acontecem em relação aos latifúndios, na violência ligada à questão da terra no campo e na cidade. Essa questão é tão subversiva que chega a ser invisível. No Brasil temos uma série de políticas sociais que estão no espaço, no sentido de estar descoladas do chão. Há uma fuga em reconhecer a questão da propriedade da terra. Para mudar a cidade, teria que aplicar a função social da propriedade. O valor social está acima de interesses privados. O Estatuto das Cidades é uma lei avançada nos países em desenvolvimento e é difícil de aplicar.
Há muito tempo fiz uma proposta, que chega a encantar prefeitos, mas que precisaria de uma linha do Ministério da Educação. Nós precisamos aprender geografia seguindo Paulo Freire, a partir da realidade que nos cerca, durante toda a formação escolar. Não só sobre a questão urbana, já que não se descola o urbano e o rural, especialmente em pequenos municípios. São questões como o ambiente construído, produção e ocupação do espaço. Quando você está numa cidade e vê uma grande avenida, tem que saber que tem um córrego por baixo. É muito didático as crianças começarem a se perguntar porque o córrego está coberto, que é um erro da engenharia brasileira, assim como as Marginais em São Paulo e a impermeabilização do solo. Não dá para começar de coisas abstratas, coisas como aprender o que é um tabuleiro, morro, península. Seria muito interessante e ajudaria a pessoa a se formar aprendendo a ver o que está na frente dela. A educação na maior parte dos países colonizados nos ensina a pensar com a cabeça do colonizador, e no urbanismo também pensamos assim, não precisa ser criança. A universidade brasileira em grande parte pensa assim. Aprendemos uma história que não é a nossa, que é muito abstrata. Há uma série de autores brasileiros, como Florestan Fernandes e Celso Furtado, que pensaram de forma original o Brasil, mas não conseguimos acumular conhecimento, porque nosso conhecimento é solapado. Quando alguém cria algum projeto original, outros não aproveitam e acabam copiando projetos do exterior. Os intelectuais deveriam furar isso. Alguns furaram, mas deveria ser mais.
Em resumo, se as pessoas pudesses pensar a questão urbana, perceberiam o absurdo que é, ficariam indignadas, sairiam às ruas. Se elas pudessem, por exemplo, pensar o quanto se gasta para os automóveis circularem no Brasil e o quanto se gasta com transporte coletivo.
Ao mesmo tempo, há uma crença geral de que tem que ser assim em relação aos carros para movimentar a economia e continuar crescendo. Como ter esperança em um país em que quase 20% do PIB depende da indústria automobilística?
Mas se você medir o custo do automóvel em função do que traz de benefício, não tenha dúvidas que que a relação é desfavorável, e as pessoas precisam saber disso. A indústria pode mudar, não precisa ser baseada no automóvel. Poderíamos estar pesquisando um veículo leve para o Brasil rural. No Nordeste, o asno foi superado pela moto. Mas sabemos que a moto não é um veículo adequado para transportar um botijão de gás, por exemplo, nem pessoas, como é o caso dos mototáxis. Elas são perigosas. Você pode pensar num veículo com motor leve? Claro que pode, a Índia tem, a China tem. No campo todo do Brasil o trabalhador é burro de carga. Já falei na CUT que não podemos condenar nossas cidades apenas por que elas empregam trabalhadores na indústria automobilística. Há outras possibilidades.
Mas tem outro lado, que é a ideia de consumo, o fetiche pelo automóvel. É difícil se livrar do automóvel.
É difícil, mas os carros são os maiores contribuidores para o aquecimento global no ambiente urbano. Pesquisas na USP vêm mostrando que em dias de maior poluição do ar, cresce o número de mortes por ataques cardíacos. Isso sem contar os problemas respiratórios.
O programa Minha Casa Minha Vida recebe bastante críticas no livro. Quais são as principais?
As críticas contextualizam o Minha Casa Minha Vida nessa cidade que não é governada. Não é o programa em si, você até poderia dizer que é um mérito do Governo Federal retomar o investimento em saneamento e habitação. Claro que eu não faria aquele programa. Ele foi desenhado com os empresários e foi uma ilusão do governo achar que poderia resolver o problema da habitação com esse programa. O maior problema é que como não se mexe na política fundiária, nada muda. Não era a intenção, mas o programa causou uma explosão nos custos da terra e dos imóveis. E também na expansão horizontal das cidades. Acho que esse é o único consenso que existe no mundo, de que as cidades não podem continuar se expandindo indefinidamente.
A moradia social não disputa com o mercado, então vai para a terra barata, que é a não cidade, não é terra urbana, é depósito de gente. Mas isso foi falado tanto na época do BNH. Tem certas coisas que dão um cansaço.
Tem como tirar esse caráter de mercado do programa? Por que, por exemplo, ele não traz nenhuma possibilidade de ocupação do centro das cidades pela habitação social.
O problema é a aplicação da função social da propriedade. Se ela acontecesse junto ao Minha Casa Minha Vida haveria uma mudança de paradigma, porque haveria recurso em termos de financiamento e de terra, que é terra-localização. Esse é um conceito criado pelo Flávio Villaça. Quando falamos de imóvel e terra urbanos, você tem imediatamente que pensar na localização, porque cada local é uma característica. Se você não tem controle sobre a terra, não existe possibilidade de justiça social, não existe.
No livro também existe uma avaliação de que os movimentos sociais perderam a força durante o governo Lula, mesmo tendo mais espaço que antes. Como foi esse processo?
Acho que durante o governo Lula os movimentos sociais ficaram banguelas, sem força para morder. Eles entraram demais na esfera institucional, as conquistas todas foram muito institucionais.
Eles foram “cooptados”?
Talvez pelo Estado, não pelo governo, pelo menos não enquanto eu estava lá.
Mas isso não faz parte do processo? No momento em que os movimentos ganham espaço, perdem um pouco da distância crítica?
Bom, de um modo geral não foram só os movimentos sociais que amoleceram. As prefeituras que estavam em um caminho original antes amoleceram, os intelectuais amoleceram. De alguma forma perdemos a força, esse caminho original. O mais característico do fim de um ciclo é o fato de que a terra foi uma questão central para a gente por tanto tempo e acabou evaporando do Minha Casa Minha Vida. Sumiu.
Mas está havendo uma renovação?
Acho que está acontecendo coisa nova, porque o que está acontecendo com o mercado de terras é muito agressivo. No cotidiano, os pobres vão se acomodando em áreas de proteção de mananciais, encosta de morros, adensando e verticalizando as favelas, mas uma hora o modelo começa a falir. O que o Minha Casa Minha Vida está fazendo é ampliar o mercado para a classe média, gente que antes não tinha acesso a uma moradia formal hoje tem por causa do financiamento. Então está havendo uma mudança, mas queríamos uma mudança mais radical, que implicasse numa mudança na questão fundiária. Você pode distribuir renda, mas se você não tocar no território, não muda.
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